Diversidade  |  21.11.2022

Balas perdidas

Apartheid 2.0 – Balas perdidas? Crianças na mira de uma política de segurança sangrenta

Todas as mães e pais sonham com filhos que possam ir e voltar da escola, aprender, brincar, crescer e voltar em segurança para seu lar. Sonham com uma sociedade onde crianças não precisem fazer treinamento de confinamento para aprender a se proteger de tiroteios. Sonham que seus filhos cheguem à idade adulta sem serem atropelados por balas perdidas. O Brasil vive o drama das balas perdidas. Mas essas balas não foram “perdidas”. Alguém atirou, e alguém determinou que assim fosse. O Brasil de hoje tem em sua segurança pública o confronto como algo aceito e estabelecido.

Segundo a plataforma Fogo Cruzado, foram mortas 47 crianças em decorrência de balas perdidas no Rio de Janeiro entre julho 2016 a setembro 2022. E, segundo a ONG Rio de Paz, 57 crianças de 0 a 14 anos foram mortas entre 2007 a 2019. Em geral são crianças pretas e pobres que vivem em favelas e perdem suas vidas pelo caminho que traça uma bala perdida. Na atual política de segurança pública brasileira, tiroteios acontecem em áreas de grande concentração urbana, em ruas onde há escolas e parques infantis. 

É inadmissível que crianças morram por balas perdidas, vítimas de confrontos de uma perseguição policial que sobrepõe a captura de um “criminoso” frente à vida. A dor dessas famílias é irreparável e o Estado não pode se mostrar indiferente, sendo absurdo justificar como “dano colateral”. Que Estado mata crianças dentro de suas casas? Que pessoa daria a vida de um filho seu em troca da prisão de um suposto criminoso?

É nossa obrigação moral combater uma política de segurança que, na prática, diferencia o valor da vida dependendo da classe social. Ou será que a polícia militar entraria em confronto na frente de escolas caras do Rio de Janeiro e São Paulo? Será que danos colaterais envolvendo a morte de crianças brancas também acontecem em bairros de classe alta? Importante lembrar que a escravidão, o nazismo e a segregação racial foram mecanismos legais de Estado, e precisamos combater as leis que deixam crianças pretas e pobres vulneráveis a serem mortas como “danos colaterais” da política de segurança.   

Será que séculos de escravidão e genocídio contra indígenas e escravizados naturalizaram nosso olhar perante a violência? Séculos de violência institucionalizada, sistemática e generalizada criaram “dois Brasis”:  

1. O país da civilidade, educação e democracia.

2. O país dos territórios indígenas, das favelas e periferias, onde a lei não vale nada, onde as forças de segurança não protegem o cidadão e pessoas não são tratadas de acordo com a Constituição.

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (…). 

Nada mais falso no Brasil, nunca existiu essa fundamental igualdade perante a lei. Qualquer pessoa que já tenha presenciado uma operação policial em favela, ou abordagem policial em homens jovens, pobres e pretos, está ciente desse discrepante modus operandi. É inaceitável que moradores de favelas sejam tratados pelo Estado com tamanha violência, e que tiroteios onde o poder público esteja envolvido ocorram perto de escolas e residências de crianças.  Já são décadas de uma política de segurança pública de confronto que leva milhares de moradores de favelas a sofrerem uma segregação não assumida e a grave desrespeito aos Direitos Humanos. 

Em um Estado democrático de Direito, é fundamental que a favela não seja vista como local onde a vida tem menos valor

Assim como os filhos de escravos eram separados de seus pais, os filhos dos moradores da periferia são sistematicamente desrespeitados. A dor de perder o filho se soma à dor da injustiça profunda de um país que declara ser democrático. Não somos um país sincero. Não há democracia no Brasil para pretos e pobres. Vivemos um apartheid velado. Em nosso país onde o Estado de Direito detém o monopólio da violência, milhares de pretos e pobres morrem todos os dias por autos de execução e balas perdidas. Precisamos absolutamente fazer a segunda abolição.

Texto de Mariana Reade e Patrick Zeiger

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